quarta-feira, 29 de setembro de 2010

infância com gosto de roça

o fechar da janela do quarto fazia ranger a madeira de anos atrás. os móveis denunciavam que o tempo existia por ali, sem a menor tentativa de escondê-lo. lembro que no quarto que eu chamava de meu continha apenas o necessário pra fechar os olhos até o dia seguinte, e o restante das coisas ficavam lá fora, espalhadas por entre outros tantos espaços. ali se cumpria o ciclo da semente que se plantava, do milho que se colhia e do mingau que convidava todos ao redor da mesa. o leite que se fervia nas manhãs era tirado das vacas que amanheciam um pouco antes da gente. aquela casa parecia ser feita de café, tal era o cheiro que se exalava pela boca da chaleira. as mesas eram decoradas pelas mãos de minha avó, que tricotava a vida com o ir e vir das agulhas. nos instantes em que o céu deixava o dia pra ganhar a noite nós íamos pra varanda e de lá eu tinha a sensação de poder ver muito além das montanhas que tocavam as nuvens. naquela época, não tão distante, eu enxergava tantos caminhos pelos troncos, que as árvores não pareciam tão grandes como as que vejo hoje. a terra que suportava o mundo também suportava meu corpo, e não só os pés, mas toda a minha pele se cobria daquele marrom. é mesmo uma pena que hoje só me reste lembrar de tempos assim...

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

você não vê que eu cresci?

pai, estava pensando... acredita que houve um dia em que eu não sabia caminhar? neste tempo era você quem segurava a minha mão, e de tão firme me fazia colocar um pé a frente do outro sem me preocupar com qualquer queda. e hoje que eu posso correr, que eu consigo mover cada pedaço meu, percebi que a sua mão continua aqui, segurando a minha. acho que é mesmo verdade que os filhos nunca crescem, e ainda bem, porque sentir sua mão contornando a minha me faz querer ser pra sempre bem pequenina pra caber no seu abraço muito maior que o meu.

cheiro de chuva!

em tempos assim, regados a gotas que você pode segurar com a ponta dos dedos, a minha vontade é de comprar uma casinha no céu pra morar dentro de uma nuvem...
e quando se descobre que tudo o que lhe resta é apenas a vida inteira pela frente?

domingo, 26 de setembro de 2010

embrulhado pra mim

se eu pudesse mandava embrulhar seu amor de presente pra mim e aí seria como um daqueles presentes que a gente custa a abrir e nunca termina de desatar os laços. traria na caixa o eterno mistério daquilo que te contém. eu teria cuidado ao redesenhar você tirando-o daquela caixa já com seu formato. seria preciso o tempo de dias após outros dias pra descobrir o que viria a ser você e a possibilidade de nunca descobrir é angustiante, porque dá vontade de escrever você por inteiro dentro de mim.

sábado, 25 de setembro de 2010

carona

as pausas entre o seu falar me fizeram respirar você em excesso. era o meu tempo que escorria no seu silêncio. sinto-me envolvida entre os cachos que se embolam nos seus fios. aceito sua carona, desde que você me leve a lugar nenhum, sem qualquer tipo de endereço, sem nome, sem referência, e principalmente, sem caminho de volta. da próxima vez, na próxima carona, não me deixe por aí. os lugares não nos pertencem mais, deixaram de existir os tais territórios. restou a minha vida dentro da sua, nossas novas propriedades.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

norte, sul, leste ou oeste?

ei, moço, me empresta a sua bussóla? acho que perdi a minha, não a minha bussóla, mas a minha direção. será que se você me emprestar o seu norte eu posso ter uma seta temporária? moço, por que você não constrói o meu caminho? posso comprar hoje mesmo tijolos suficientes pra contonar uma cidade. se eu for lá agora você pode começar hoje?

terça-feira, 21 de setembro de 2010

menino de rua

trazia nas unhas o trincar do amanhã que deixara de existir desde que ele já não esperava o dia seguinte e o ir e vir das noites parecia um eterno continuar de uma vida emoldurada. os pés estavam pretos e a pele denunciava que por baixo da sujeira havia um mundo subetendido. pra dar conta dos poucos desejos que ainda restavam os pés criaram rochas debaixo dos movimentos descalços. os cabelos nasciam por onde determinava o corpo e o cheiro acontecia pela naturalidade humana. pena que respirava. no inspirar da vida sentia fome, nem sabia de quê, mas todo dia precisava alimentar seu corpo pra dar conta de manter o coração. vestia-se de furos encontrando outros furos, emendando assim os fios rasgados pelo tempo. andava pelas ruas como quem ora vai pro quarto, ora vai pra sala. as ruas eram sua casa e a divisão das partes mais íntimas era dele. descobria mesmo em toda aquela impessoalidade um lar pra chamar de seu. era menino, conhecido por ser de rua, o pior é que rua não é de ninguém...

domingo, 19 de setembro de 2010

estrelas que são minhas

- papai, eu queria ter uma estrela...
- filha, você pode ter todas elas. tudo aquilo que você pode guardar com olhos é seu por direito. é pura tolice humana a necessidade de guardar entre chaves aquilo que se pensa possuir. tudo o que temos não está em nenhum lugar além de dentro de nós mesmos...

que seja eterno

sabe pai, as vezes eu fico horas olhando pra você, numa tentativa de guardar o futuro dentro dos olhos meus. sabe pai, tem pessoas que não podem morar no céu, porque as nuvens impedem que daqui da terra os outros a vejam. sabe pai, ao lado da minha cama eu coloquei uma foto nossa. nela está impressa a minha infância. você está agachado, e eu estou protegida entre os seus braços. o seu dedo aponta pra um lugar que a foto não me deixa ver, e é por isso que eu escolhi esta imagem. sabe pai, quando eu penso em amor eu vejo você. sabe pai, eu também sinto medo, me sinto feito fruto quando nasce de uma árvore e receia sobreviver pouco tempo sem raíz...

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

qualquer tipo de vôo

flor quando acorda estica as petálas até conseguir abraçar o mundo. borboleta quando cresce colore o corpo até parecer flor em movimento. passáro quando aprende a voar chega tão alto que a gente acaba por confundir daqui de baixo com asas de borboletas. avião quando decola atravessa as nuvens e não se mistura com os vôos da natureza. e o homem fica com os pés presos ao chão no eterno sonhar de ter qualquer tipo de vôo, seja com asas firmes de avião, com o ziguezaguear das borboletas ou com a liberdade cantada pelos bicos dos pássaros.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

rugas contando histórias

havia uma trilha que lhe pertencia e que cruzava o corpo inteiro dando nós desatados pelo tempo. as rugas lhe cobriam de uma história longa deixando marcado na pele o acontecer da vida. eram muitas as linhas traçadas pelo corpo de Dona Terezinha. a velocidade das coisas já tinha sido abandonada há tempos. as pernas eram obedientes à inexistência das horas. a pressa se desacelerava pelo inspirar das esquinas de um ontem que se metamorfoseava no agora. aquela senhora fazia cumprir o ciclo natural dos olhos, que só próximos do último parágrafo aprendem de fato a enxergar.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

saudade

é que quanto mais eu vejo você mais saudade se acumula em mim. acho que a saudade acontece quando você está bem pertinho... e aí eu fico com a sensação de que o relógio corre mais do que eu e que não há tempo que caiba no passar das horas. e aí, a inevitável despedida dá início a minha espera pelo próximo abraçar dos poros. acho mesmo é que ver você dá saudade... quando a distância nos mantinha nas caixinhas da memória os dias sem você não eram tão angustiantes. mas com nossos olhos se encontrando no emendar das noites eu começo a achar estranho quando surgem estrelas sem que você se faça realidade minha...

pequena menina

tinha maõs que cabiam dentro da minha
trazia na pele uma cobertura de infância intocada pelos anos
as pernas não lutavam contra o tempo
as brincadeiras guardavam a liberdade da imaginação
a pequena menina via o mundo lá de baixo
de um lugar mais próximo da terra
mas os olhos se prendiam lá em cima
nas coisas já invisíveis para os adultos tão mais próximos do céu

domingo, 12 de setembro de 2010

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

na falta da asa a menina concluira que a morte era a forma mais rápida de se alcançar o céu...

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

nossa péssima tradução

quando enfim conseguia o silêncio as mãos ficavam perdidas, o corpo balançava sem encontrar apoio. olhar você sem dizer nada é desconfortante. sinto-me perdida de mim mesma sem poder ao menos controlar os meus movimentos. a minha pele começa a ter uma vida que segue um caminho que eu não posso alcançar. me denuncia. a minha pele mostra tudo aquilo que eu nego com as palavras. o pior é que a minha pele não me trai, ela é aquilo que há de mais fiel em mim. se eu fosse você a partir de sempre passaria a conversar comigo pelas retinas. assim poderiamos ir muito além destas letras que a gente pensa pra dizer. deixariamos os olhos nos levar pra onde eles quisessem, afinal o corpo em liberdade desconhece qualquer limite inventado pela razão. mas eu preciso que você me proíba de me acomodar entre os textos, que negue me ouvir. não se trata de surdez. falo de todos os sentidos misturados numa cor só. quando me sinto nos olhos seus percebo seu gosto, seu cheiro, seu som, sua pele. não dá mais pra ficar nessa via de mão única sem que possamos nos esbarrar nos nossos supostos sentidos opostos. já esgotou a minha paciência pra nossa péssima tradução dos poros em palavras rasas. há muito mais linhas nos nossos pensamentos. há muitos parágrafos nesse nosso desconcertante silêncio...

a culpa precisa ser sua

ver você faz bem pro corpo, pele, poros, alma. depois que você se vai, você fica latejando em mim feito realidade. depois de me acumular entre dias de saudade eu me fiz explosão quando me vi dentro dos olhos seus. não tinha como dosar os trinta dias camuflados em maresia. foi só você surgir pra resgastar toda a tempestade que eu pensava ter controlado. vem depressa, vem agora, que é pra eu não transformar sentimentos em números. arromba esta porta que eu insisto em fechar. destrói este muro pra eu poder culpar você da vontade que é minha também. sozinha é pesado demais. vem comigo que eu finjo esquecer da chance de ter que remar sozinha e posso até pensar em remar por nós dois...

insensatez

foi insensatez minha perfumar a minha pele com um cheiro que era dele. não sabia eu que assim abriria as portas do meu corpo pra que ele entrasse sem permissão? o cheiro que antes era dele agora parecia ser meu. meu corpo exalava pra si mesmo exaustivamente um cheiro que não permufava nada além de pensamentos. foi tolice minha a de querer inspirá-lo em um frasco de iusões...

toda a beleza que houver...

a beleza dele não era invenção minha. eu nunca precisei criar nada pra que ele fosse tão bonito assim. este é afinal o segredo. desde que aceitei a realidade que era dele todo o resto que vinha em torno parecia derramar o excesso que nascia dos meus olhos. era desnecessário qualquer pincel que pudesse retocar qualquer detalhe. tudo estava como devia estar. se faltava a nossa ponte não era a minha imaginação que iria dar conta dos tantos tijolos necessários. a realidade atravessava os meus desejos, me enfrentava. esta era a minha condição. acontece que mesmo com toda a realidade ele ainda se fazia tão bonito... o pior era isso. saber que toda aquela beleza não era mais uma invenção minha. eu já não poderia desmanchá-la quando decidisse abrir os olhos. não cabia a mim o desvio. de repente todos os caminhos se resumiam em um só. ali estava toda a beleza que em outras vezes eu precisei criar. era assim toda vez que meus olhos se atreviam a fitar aquele contorno proibido. seria assim enquanto eu continuasse a insistir a alimentar os meus olhos que se tornavam cada vez mais insaciáveis. era certo que seria assim... uma vontade desenfreada de ficar olhando toda aquela beleza por pelo menos a minha vida inteira...

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

gravidez fora do corpo

acho bonito quem adota histórias em forma de gente, quem adota uma pessoa pra poder chamar de filho, quem adota mais que um ser humano: adota uma vida que precisa acontecer contornada por uma família. o sangue não corre só nas veias, ele também corre pelos olhos. acho bonito quem consegue enxergar que a gravidez também pode acontecer fora do corpo. é coisa do amor. não tem idade, não tem endereço, não tem cor. basta o amor... adotar alguém pra poder abrir a gaiola, pra poder descobrir que se tem asas, pra poder saber o que é ter no mundo um amor de pai e de mãe...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

rio sem margem

antes de tocar o sinal a mochila já se prendia ao corpo de Priscila. bastou o avisar das horas soar por um segundo pra menina levantar e sair correndo pra tarde que estava por vir. encontrou com a amiga na porta e de mãos dadas as duas saíram cheias de desejos combinados no dia anterior. não falaram nada no caminho, mas não passavam 60 segundos sem que elas trocassem olhares lotados de travessuras. aceleravam nos passos o tempo que os ponteiros não davam conta de segurar. enquanto seguia correndo, pelo caminho de outras tantas histórias, Priscila começava a viver o instante seguinte, colocando todo o futuro em uma caixinha bem desenhada pela imaginação de menina colorida. quando estavam prestes a colocarem os pés no destino as duas arrancaram qualquer compromisso arremessando as mochilas bem longe de qualquer corpo que as pudesse segurar. ainda com os pés acelerados, de tal maneira a fazer a pele extravazar em forma de suor, elas foram tirando os panos que as cobriam e os deixando pelo curto caminho que ainda faltava pra mergulhar as vontades. despidas de todas as coisas que não fossem as vontades que gritavam naqueles milésimos de segundos elas então pularam no rio, e estando no rio parecia não existir margem, nem fundo, nem superfície. elas se quer precisavam remar, elas não seguiam pra lá ou pra cá... era um mergulho daqueles de infância, quando a vida inteira parece caber em um único desejo...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

ela era o lugar

sabia onde queria chegar. sabia desde que ela chegara até o mundo, porque apesar do mundo existir desde sempre não era desde sempre que ela o enxergava... acontece que mesmo sabendo deste lugar ela não conseguia esticar uma seta e seguir em linha reta. assim seria simples demais chegar lá, em um lugar tão distante como um sonho. antes disto ela precisava preparar uma infinidade de detalhes pra tornar aquele lugar, lá longeeeeeeeee, um lugar que de tão perto a faria abrir outra janela pra enxergar um outro lugar. pensava na distância desses desejos, e mais do que isso, questionava a ausência de um encontro que esgotasse outras vontades. perguntou até mesmo se esse tal lugar onde ela dizia querer chegar já não era parte da terra que seus pés deixavam pegadas. os seus desejos não podiam ser tão inalcançáveis assim. foi então que percebeu: ela já estava lá, já morava lá, fazia tempo que o lá vivia aqui, bem pertinho dela, do lado de cá, do lado de dentro. deixara então de viver pra alcançar um outro lugar. ela era o lugar. o mundo era mera decoração do lugar que ela fazia de lar. o lugar maior era por demais imenso, era pulsante, corria por diversos caminhos fazendo tudo se concentrar no centro de todas as coisas: no coração. tal descoberta fora fundamental pra que ela pudesse ser personagem da própria história e não da história contada pelos outros de um mundo que não era o dela...

70 anos e sonhando...

 sonhos, os seus, não envelhecem. não porque sejam eternos - mas porque são renováveis, e mudam de cor.  sonhando desde sempre, você não foi...