domingo, 31 de janeiro de 2010

primeira vez

diferente dela, eu sei qual é a cor dos fios dele. são exatamente como ela os descreveu, castanhos com cores de um entardecer. ele me pediu para que juntassemos moedas para que pudessemos dar as mãos até um outro lugar. ele não sabe que sem moeda alguma eu já fui com ele aos lugares onde ninguém consegue chegar. nossas passagens já estão todas compradas. enquanto ele não volta eu uso uma por uma, dia após dia. são distâncias que nenhum avião pode dar conta. nenhum transporte. eu viajo até aquela esquina, no canto esquerdo, onde tudo vibra, tudo pulsa. eu vou pra lá e tento a cada segundo construir bases de tijolos que não se desfazem com terremotos. deixo lá nossos lençóis cor-de-pele. e ontem eu viajei um pouco mais, eu sei. mas tem dias que os pés estão mais livres, mais dispostos. ontem eu corri como se o tempo já não existisse. pensei que se a minha velocidade pudesse ser maior do que a dos ponteiros eu poderia chegar até ele antes da hora marcada. e aí ele perderia a reação, aquela razão. eu não o deixaria pensar nos tantos dias seguintes. e seríamos eu e ele, ali, agora, naquele instante, em um segundo. e depois disso... pra sempre isso. porque será o nosso primeiro toque, mesmo que seja o terceiro. nós decidimos começar outra vez, e é assim mesmo. cada lábio vai tocar o outro dias seguidos como se fosse a primeira vez. e pra cada vez um gosto, pra cada vez um dele, para cada vez a primeira vez.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

"Eu não sabia, Senhor, que o mundo era tão vasto e doloroso. E que, desejando a vastidão do mundo, meu coração conheceria também a vastidão da dor. Por que, Senhor meu, permitiste que eu tentasse fugir da minha pequenez? Por que me deste todos esses sonhos muito maiores do que eu?"
Caio Fernando Abreu

o por quê de um sobrenome

ela tinha nome, tinha até sobrenome. mas só usava o nome. o sobrenome tinha lá a sua razão de ser. fazia com que ela não fosse mais uma, fazia dela uma entre tantas umas. é certo que cada uma tem a sua cor. um dia, num fim de tarde de outono, eu e minha amiga estávamos sentadas na escada que encostava no céu. neste fim de tarde, que nos fazia sentir mais próximas das estrelas, ela me disse que erámos todos iguais. que apesar das diferentes tonalidades de pele, dos formatos diversos de um contorno, das tantas possibilidades de reação, erámos todos um. mesmas necessidades, mesmos vales, mesmos picos. alguns vales com mais petálas e outros picos com menos ar. mas as mesmas montanhas. me contou que era pura vaidade tentarmos ser um e não todos. eu sei que não há chance da minha mãe me confundir com outras mechas de cabelos semelhantes aos meus, mas hoje eu entendo o que a minha amiga quis dizer. ela falava dessa ponte que a gente cria, dessa distância das coisas tão próximas. os outros. do meu lado, do outro lado do oceano, do lado de lá da rua: há eu e há você. somos nós. a mesma matéria, a mesma abstração. não aceitando esta condição fomos criando novos cortes de panos, novos embrulhos para os lábios, novas maneiras de se ver, mesmas formas de sermos vistos. uma continuação do que fomos, dos nossos pais, avós, bisavós. é urgente reconhecermos a nossa semelhança e esticarmos o tapete verde de grama para deitarmos juntos nas noites de espera do dia seguinte. por que eu sei que ele vai chegar!

não há nada que seja meu

eu não queria. eu ainda não quero. mas o não querer dele me faz pensar se realmente eu não deveria querer. mesmo aquilo que não queremos não gostamos de deixar ir embora... e no fim o quê é que a gente tem? o quê é que é nosso? não há isso de posse. nem mesmo me possuir eu poderia. nem mesmo uma pedra poderia ser minha. então pra quê serve essa necessidade humana de colocar dentro das mãos coisas que não podemos se quer enxergar? não há nada que eu possa chamar de meu, não há nada inventado pra caber dentro de mim, não há nada com uma chave apenas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

dois e não um

ele e ela. um casal, ou vários deles. depois de tantas cores de céu decidiram construir um lar, um para cada um. uma casa a esquerda, a dela, e outra a direita, a dele. idênticas, mas separadas. ainda tem ela e tem ele. sem convenções, pra preservar a saudade, que não deve ser desfeita. dois nunca serão um. ele ainda vai querer jogar futebol nos dias que terminam com feira e ela continuará escolhendo os lugares onde se pode ou não descansar os pés. os encontros serão frequentes, mas unidade não haverá. ele é ele e ela é ela. entre os dois o amor, dele por ela e dela por ele. todo o mais além disso é mera coincidência.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

raízes precisam de céu

a medida que foi esticando a pele foi cavando a terra e colocando cada vez mais fundo os seus pés debaixo dela. era uma espécie de árvore criando raízes profundas em diversas direções. com o movimento dos ponteiros do relógio ele ia se esquecendo das folhas que ficavam lá fora. queria ser só raíz, apenas raíz. engano. olhava tanto para as raízes, preocupado em mergulhar nos limites abaixo dos olhos, que não sabia olhar pra cima, desconhecia que não havia fim... iludido ele cavava o próprio túmulo, porque olhar para uma única direção é como morrer. não há apenas um cheiro, apenas uma cor. ele já não queria saber das outras janelas, queria morar dentro daquela única fresta de luz que havia encontrado. ele não queria saber de nada mais... ele já não sabia de nada mais.
pro nosso primeiro dia de ausência ele me mandou um coração. estava ali, desenhado na tela, e eu conclui que era o dele.

você volta, né?

ficou aqui uma parte de mim, porque eu não sou inteira quando você não está. agora sobra espaço para os meus pulmões que voltam a respirar o ar que me contêm. é porque quando você está por perto tenho a impressão de que fico prestes a absorver a última molécula de oxigênio, me falta ar, me falta movimento, me falta qualquer certeza. enquanto você não volta eu tento inventar pedaços seus perdidos entre as flores que deixamos no chão. mas você educadamente escorre por entre os meus dedos, me avisa da despedida e eu deixo você ir... sigo você e descubro que são apenas sombras. você já não está. mas eu insisto em enxergar fios seus nos corpos de outros homens, em sentir o cheiro seu nos corredores, em tocar você tocando a mim mesma...

perto do azul

desde a primeira vez que o vi colocaram em mim algo que não era meu. já no meu primeiro passo eu usava um sapatinho que separava minha pele do chão. pra cada vento que soprava me enrolavam em temperaturas inventadas pra me proteger das coisas como eram. se havia lágrimas logo criavam razões para a alegria, porque chorar nunca foi coisa boa. bom mesmo era o silêncio, a sensação de normalidade. a possibilidade de mudar um caminho, de errar a seta atraía mãos demais nos meus sentidos. e aí sem perceber eu fui seguindo uma reta que não era minha. até chegar no ponto limite, quando ou se fecham os olhos ou se pula de um precípicio, não para cair, mas para chegar mais perto do azul lá de cima.
"Mas não é preciso acreditar em alguém
ou em alguma coisa - basta acreditar(...)"
Clarice

sábado, 23 de janeiro de 2010

tempo de pele

eu e você somos feito intervalo. não estamos misturados a outras coisas. somos só eu e você. como se o relógio pudesse parar de marcar o tempo. e o tempo agora fosse medido com a pele. como se o tempo de repente se tornasse nosso e a gente pudesse fazer o que quiser com o dia que inexplicavelmente se torna noite. fecham-se as janelas, fecham-se até mesmo as cortinas e abre-se o resto. eu entro pela porta que fica no canto esquerdo do seu peito e a cada fatia de segundo eu vou entrando mais e mais. e não há fim. e não há como me saciar de você. a materialidade exposta entre nós dois é mera desculpa para explodir a abstração que há dentro de mim. eu olho pra você e perco a noção do que possa ser um foco. meu corpo se desmancha com o peso das minhas pálpebras. eu diminuo o ritmo dos passos pra prolongar sua pele do lado da minha. eu aceito cada convite seu, até aqueles que eu só chego em pensamento. eu me sinto sua como se você tivesse me achado por aí e me guardado dentro de uma caixinha com pequenas frestras para o mundo. e agora eu já nem olho para o mundo, porque o mundo está completamente contido em você. e você sabe disso. você vê isso. mas nem eu nem você dizemos nada. está tudo esparramado, desmontado, só esperando a primeira conversa dos lábios. e então perco a vontade das coisas que você não está. não te conto isso, mas você me lê. e sabendo isso eu escrevo desenfreadamente um livro de páginas não numeradas. não disfarço nada e deixo as minhas mãos a vista... pra que você entenda que eu estou apenas a espera do seu primeiro pedido.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

com ele eu sinto cada pedaço de pele meu latejar, como se meu coração começasse a bater em cada curva minha.

acordei assim

e é frequente essa vontade de descrever qualquer coisa que me arrepie, é mais frequente ainda essa vontade de sentir os arrepios. toda essa calmaria só indica que vem por aí ventos bem mais fortes que o meu corpo. em breve eu hei de ser levada por algum movimento de fazer fechar os olhos. olhos, que depois de fechados, só enxergam as cores que a lente permite ver...

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

costurando o amanhã

há 40 anos ela une pedaços de panos que cobrem os corpos. pequena, dos cabelos pequenos, das mãos pequenas. em um pedaço de tempo ela costura o futuro. a fila de estampas é tão grande que ela dividiu em duas. as cores chegam em retângulos e ela recorta os contornos. imagine quantos embrulhos ela já não fez... gostar mesmo ela gosta de vestir as festas com tecidos se enroscando pelas curvas. com as linhas ela faz a forma de qualquer pensamento. o que quer que você possa imaginar Maria Lina pode costurar!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

pombo de cada dia

onde eu moro tem uma janela que dá para o mundo, mas o mundo não dá para a minha janela. nesta abertura onde eu posso ver o céu há um pequeno canteiro tentando contornar a imagem. poucas flores tentam nascer por ali. faz alguns dias que um casal de pombos nos visitam diariamente enquanto almoçamos na mesa larga no canto da sala. hoje fui observá-lo e vi que uma vida está prestes a acontecer. um filho dentro de um ovo! no canteiro da nossa janela! é mesmo lindo ver a vida se multiplicando por aí...

planeta apertado

já não cabia em qualquer pedaço de mundo. no quarto dela, onde existiam as coisas dela, ela já não cabia. não cabia no coração dos outros, nem no coração da mãe. ela não sabia mais como não pertencer apenas a si mesma. tantos nãos. era uma questão de querer mesmo. ela já não queria essa vida que era a mesma de antes. preferia os instantes de solidão e quarto de paredes mal pintadas. ela não iria desistir. não agora, depois dos passos deixados por aí. ela ainda lembrava dos sorrisos de dentes mais brancos que o escuro de uma noite. ela sabia das suas razões. essa menina... ela enfrentava as pontas afiadas com pés de bailarina, mas as pontas arredondadas ela não conseguia ultrapassar. detestava formas perfeitas, encomendadas. desejava ser feliz e depois que fora não sabia como ser novamente. não se tratava de um estado de espírito, isto era mentira inventada por ilusões de conforto. ela precisava se doar nem que fosse pra uma estrela apenas.

domingo, 17 de janeiro de 2010

gemido de um cachorro

um dia eu atropelei um cachorro. estava no meu carro subindo um morro, daqueles inclinados, que você precisa acelerar pra chegar até o final e o cão entrou na minha frente. ele deve ter pensado que dava tempo... mas nem sempre há tempo suficiente. o cachorro gemeu e eu segui viagem. nem sempre os sons de dor páram a gente. tem instantes que o destino final faz a gente manter o ritmo sem olhar pra trás. eu não gosto disso. considero de extrema importância as flores que moram debaixo dos meus pés. se estão secas, pra onde olham, as cores de cada dia, as pétalas que se abrem, as folhas que nascem. o gemido de um cachorro. desde que eu comecei a viver, e isso tem uns dois anos apenas, eu quero que seja pra sempre assim. um olhar para as coisas pequenas tão grandes internamente.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

acho a coisa mais linda os casais que se abraçam debaixo da chuva pra caber em apenas uma sombrinha...

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

cega por enxergar demais

e ela mesma o que seria? existiria algo que ela fosse tal qual pedra? ela que tinha forma de gente não poderia sobreviver entre as aspas. vivia e apagava. como se carregasse nos pés pedaços de borracha e nos olhos lápis afiados. escrevia o amanhã a partir das retinas. olhava e depois vivia. primeiro chegavam os olhos, intrusos, pertubadores, e em seguida o corpo, inocente, manipulado. ela enxergava tanto que lhe fora receitado usar óculos que ofuscassem a sua visão. diziam por aí que não era preciso ver tantos detalhes, que ela ia fundo demais. sendo ela parte deste todo decidiu experimentar as tais lentes. em pouco tempo percebeu-se cega. não enxergava os outros e de frente para o espelho nada via refletido... ela já não era... se é que um dia fora...

domingo, 10 de janeiro de 2010

o tempo corre nas veias dele

o tempo não é invenção. poderia até viver sem calendário e sem relógio. sem data, sem ponteiros. e ainda assim saberia do meu tempo. ele vem pela pele, pelo rosto, pelos olhos, pelos passos. não me parece normal imaginar que um dia minhas mãos cabiam dentro de outras. eu vejo o tempo correndo pelos passos do meu pai. ele está envelhecendo e as vezes essa velhice me dá medo. medo de não dar tempo de fazer com ele todas as coisas que eu quero. hoje levei meus dedos para passear entre os fios de cabelo dele. vi que ele está ficando careca e que muitos fios estão brancos, mas cheios de cor. a pele dele já tem marcas das curvas mais percorridas. os olhos já não são independentes. eles precisam de lentes pra enxergar o vento. a memória já está quase lotada, sem espaço pra lembrar dos detalhes dos dias que vem e vão. e mesmo com todas essas páginas viradas ele continua o mesmo pai que me carregou no colo. ele já passa dos 50... e eu com metade da vida dele queria que fossemos um só, pra que nem eu nem ele tivessemos que ver a partida um do outro.
acabou há dois anos, mas pra mim o fim se deu apenas hoje.

sábado, 9 de janeiro de 2010

quando me falta eu mesma

ele ainda tem o mesmo nome, ainda sorri com os mesmos dentes, ainda usa a mesma cor de sapato, ainda olha para os mesmos cantos, ainda conversa do mesmo jeito, ainda é o mesmo... eu que pensava ser pessoa corajosa me vi com medo até de olhar. não queria perder aquilo que eu já nem tinha. queria guardar pra sempre toda aquela ausência. tive medo de enfrentar os olhos dele. como tive medo... não soube encará-lo, porque era o mesmo que encarar a mim mesma. nele estão tantas coisas minhas, que eu já nem sei resgatar. ficam lá, presas, enjauladas. quando ele se aproximou eu esqueci que sabia falar. fiquei muda, como se o silêncio pudesse dizer todas as coisas. mas silêncio não diz e muito menos disse o que eu queria. e desta vez não sei se resta futuro, nem passado. não sei onde é que foi parar as coisas nossas, o nosso tempo. já não sei aonde procurar... já não há lugar que eu não tenha remexido. não há uma pedra se quer no mesmo espaço. e por mais que sejamos os mesmos há uma grande diferença entre aquilo que fomos e aquilos que somos. ele já não sou eu, ele já não me carrega. me esqueceu por aí faz tempo e não sabe lembrar. a questão é, não é ele, mas você. todos sabem quem é você. eu não preciso fingir, nem chamá-lo de ele. e que você saiba: eu fiquei a noite toda a espera da sua despedida, daqueles poucos segundos em que você se encostava em mim, em que o meu e o seu olho eram um só. assim despedimos de não sei o quê exatamente, porque não havia nada para deixar pra trás... você já havia abandonado cada detalhe pelas esquinas... sem deixar nenhuma migalha para que eu pudesse encontrar o caminho de volta.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

dia de sol

depois de dias de chuva é quase excitante um dia de sol. saí pela rua e achei gostoso sentir a minha pele latejar. bobo é quem foge do amarelo pra não suar, pra não envelhecer. o dia só é dia se for sem teto, se for debaixo do céu. tem que se deixar queimar pra saber da delícia de uma pele cor-de-sol. lá fora tudo fica mais bonito. as sombras se inventam com mais contraste, fazendo contornos em mim, porque também são necessários intervalos do sol. as folhas das árvores continuam verdes, mas hoje elas estão mais verdes ainda. existem todas as cores e as cores debaixo do sol. e daqui a pouco, quando o círculo decidir ir embora, lá em cima vai se fazer pintura. é o sol maracando o horizonte. porque sol que é sol não sai assim, de repente.

seguindo pra trás

de uma forma ou de outra eles tentarão sugar você antes que o tempo acabe. a vida deles é medida em anos, com projeções, com amanhãs. a sua é só o segundo que resta até o próximo instante. mas a sua vida está inserida na deles. você faz parte. está dentro. e chega uma hora que você vai, segue a correnteza, mas ainda assim não entra. mantém o corpo todo fora d´água. segue de barco, olhando para o que deixa pra trás. dá passos, mas mantém os olhos no que um dia já foi. até tenta remar, mas inevitavelmente segue pra um lugar que já não dá mais pé: o ontem.
"Eu te amo – disse ela com ódio ao homem, cujo crime impunível que cometera era o de não querê-la".
Clarice...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

por você maninha

fui antes porque assim me foi pedido. nada muito formal. veio lá de cima. mas de alguma forma desconhecida eu sabia. cair pra manter você em pé não deixa feridas em mim. ainda bem que eu pude fazer isso por você. e faria outras tantas vezes. deixaria ralar toda a minha superfície pra ver você se recuperar. isso não dói. amar você não dói.

tempos verbais em gotas

o mar tem qualquer coisa de infinito. de não podermos ver até onde vai a última gota. futuro. um rio tem qualquer coisa de seguir sempre em frente. de ser água de uma nascente permanente. presente. uma lagoa tem qualquer coisa de prevísivel. de um círculo com linhas fixas em volta. passado. e a chuva que molha um é a mesma que lava o outro. porque no fim há em um tudo qualquer coisa semelhante.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

no quarto ao lado

eles ainda moram aqui. vizinhos. é a mesma distância que antes. um abrir de portas e um encostar de peles. presença não é só física, por menos científico que isto seja. aliás, ciência pouco faz parte de mim. e num dia desses, que não se sabe exatamente quando se deixa de ser dia e se transforma em noite, eu abri a porta do meu quarto e fui para o dele. lá estava o lençol verde furado, furando-se. a bagunça continuava espalhada pelo chão que a suportava e a incentivava. ele dormia sozinho e era muito espaço pra uma pessoa apenas. então a desordem era uma forma de ocupar o vazio, tão desnecessário. sob a mesa o caderno. dentro do caderno folhas de segredos. um mundo particular a vista, ao meu fácil alcance. se você resistiria, eu não. eu olho por qualquer janela que tenha a mínima fresta. só pra chegar lá, do lado de lá, do lado que não é meu.

no poço

"Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê."
Caio Fernando Abreu

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

vários de um

sendo ele um apenas me parece estranho os tantos personagens que ele é. preste atenção. repito: "que ele é". porque apesar de ser personagem ele não representa, a vida sim, o representa. ele foge de perfis, de vitrines. um tanto quanto fora da moda. ele está sempre ao redor... em torno, na varanda. ele não entra completamente. ele deixa pra fora nem que seja um dedo. isso pra manter ele mesmo, pra não copiar o personagem do dia anterior. porque no dia seguinte ele já não pode ser mais aquilo que alguém acreditou que ele fosse. e não é culpa dele se os olhos dos outros têm a mania de descrevê-lo. ele não é nada disso do que dizem. e se ele comer abóbora hoje e repetir é muito provável que amanhã ele deteste. ou não.

um

nos lábios dele ela se deitava, se esparramava. eram tão carnudos que ela se perdia entre eles depois do primeiro encontro. muitas eram as esquinas que ela percorria... o toque dela era dele e vice-versa, porque tem mesmo que ir e vir. ela tinha as mãos pequenas e redondas. ele tinha os dedos compridos e ásperos. a mão dela cabia dentro da dele, ela morava dentro dele. o que um sentia o outro consumia, lambendo até as beiradas. não havia restos, não existia sobras... era ele nela e ela nele.

70 anos e sonhando...

 sonhos, os seus, não envelhecem. não porque sejam eternos - mas porque são renováveis, e mudam de cor.  sonhando desde sempre, você não foi...