quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Da delícia de ser uma Amélia

Ela só queria ter um nome que chamasse algo além de gente. Não queria ter um nome que quisesse dizer algo. Queria ter um nome que dissesse algo. Que quando ela ouvisse tivesse desejos de ser aquilo e sendo assim a fizesse atender o chamado por um espontâneo reconhecimento. Mas pra isso ela só não sabia qual nome escolher. Existia ali um problema: não cabia tudo dentro de um nome. Por isso se contentava em responder quando alguém a chamava por Amélia.

Ela tinha medo de ser esquecida. E quando acordou já era segunda-feira, bem clara. Atrasada para o trabalho! Era comum o relógio correr mais do que ela, pois Amélia detestava exercícios. As coisas tinham esse péssimo hábito: de chegarem atrasadas até Amélia. As coisas não conseguiam se adaptar a menina, era a menina que precisava se adaptar às coisas. Por isso as meias trocadas e a saia amassada, bem no ponto que ela deveria girar o mundo. Ela mesma não notava e achava normal a sua incoerência com as teorias lá de fora. Mesmo se acordasse cedo, fato que não aconteceria, Amélia usaria as mesmas roupas e teria o mesmo cabelo despenteado. Ela não tinha espelhos, nem os procurava. E sem espelhos ela podia ser o que quisesse... Ah! Quanta liberdade... Os outros tentavam consertá-la, porque pensavam que era Amélia a pessoa fora do padrão. A menina aceitava as críticas só pra ver todos saírem mais rápido e ela ter mais tempo para escrever cartas para ele. Todos os dias escrevia uma. Não recebia resposta. Se quer as enviava para ele. Ela mesma lia em voz alta as declarações. Ele não existia. Então ela lia pra qualquer moço que decidisse ser ele no momento. Eles não tinham muita paciência e geralmente interrompiam a leitura antes do final. Amélia deixou de se preocupar com isso. Ela gostava mesmo era de ler as cartas sozinha no quarto. As partes que eles não queriam ouvir ela guardava no fundo mais fundo da bolsa. Chegava em casa e lia os finais inéditos para o homem da vida dela. Ele só existia de fato no quarto dela, e por isso, no mundo inteiro. Amélia inventava quartos por todo canto que viajava. Os beijos deles eram de vento e aconteciam quando uma letra acompanhava outra fazendo criar sentidos. Eram beijos de olhos caídos, por não suportarem o peso do sentimento que ela jurava enxergar. Eram beijos que por não tocarem os lábios eram inventados poeticamente. Ela tinha era pavor do momento em que as pessoas ultrapassavam o imaginário e começavam a ser realidade perturbadora.

O pavor tinha uma razão. Toda vez que ela acabava de construir o seu castelo alguém destruía pelo menos uma das janelas. Então Amélia começava a morar em outros espaços, em quartos mais iluminados. Enquanto era dia ela saía na varanda e pegava a luz. Guardava cada pedacinho na sua caixinha de escutar música. Quando era noite... ela fechava as portas e as cortinas. Deixava tudo bem escuro. Enganava as estrelas e a lua. E lá dentro, escondida dela mesma, ela brincava de dias e noites sem horas marcadas.

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